Manchego: O Ouro Dourado da Mancha, um sabor que transcende séculos 70q4b

Além de um alimento, é uma história talhada em massa compacta, herança que preserva o balido das ovelhas da raça autóctone e a maestria de quem o amadurece há séculos. 4q4b4b

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Íris Parizotto

28/02/2025 15h48 - Atualizado há 2 meses

Manchego: O Ouro Dourado da Mancha, um sabor que transcende séculos

Foto Divulgação Freepik e Íris Parizotto

Sob o horizonte sem fim de La Mancha, onde os moinhos de vento dão movimento às palavras de Cervantes, surge um patrimônio impregnado de aromas terrosos, lãs rústicas e sabedoria ancestral: o Queijo Manchego. Além de um alimento, é uma história talhada em massa compacta, herança que preserva o balido das ovelhas da raça autóctone e a maestria de quem o amadurece há séculos.

Raízes Antigas, Sabor Imortal

Sua história é tecida no próprio solo árido de Castela-La Mancha. Guardião de segredos ancestrais, o Manchego remonta aos Celtiberos, que já transformavam o leite das ovelhas em alimento sagrado. Mas foi na Idade Média que ele se tornou lenda, atravessando tavernas medievais e banquetes reais. A receita? Simplicidade e rigor: apenas leite cru de ovelhas da raça Manchega, criadas sob um sol implacável que as torna únicas, capazes de entregar um líquido denso, rico em gordura e personalidade.

Textura que Seduz, Sabor que Encanta

Ao primeiro olhar, a casca dourada, marcada por sulcos que imitam os cestos de vime de outrora, promete uma viagem no tempo. Ao cortar, a pasta compacta revela um marfim sedutor, levemente cristalizado nos exemplares mais envelhecidos. Na boca, é uma sinfonia: notas de nozes torradas e manteiga fresca no semicurado (2-3 meses), evoluindo para toques de ervas secas e um caramelo suave no curado (até 6 meses). Já o viejo (1 ano+), é um turbilhão de intensidade — picante, terroso, com cristais salinos que explodem em um final longo e memorável.

DOP: O Selo de um Patrimônio

Protegido por Denominação de Origem desde 1984, o verdadeiro Manchego só respira o ar de La Mancha. Cada roda é um tributo ao território: o clima extremo, o pasto áspero e as ovelhas de chifres retorcidos imprimem no queijo um terroir inimitável. Até o desenho da casca, hoje feito com moldes de aço, preserva o legado dos antigos cestos de esparto — uma homenagem à história que não se apaga.

Dom Quixote à Mesa: História e Legado

Miguel de Cervantes menciona "pan y queso" (pão e queijo) em Dom Quixote de la Mancha (1605) como alimento básico das viagens de Sancho Pança. Embora o autor não especifique ser o queijo Manchego , historiadores gastronômicos como María José Sevilla (Spain’s Culinary Heritage: Cheese) apontam que, dada a origem geográfica da trama e a tradição local, é plausível que Cervantes se referisse a esse queijo — ainda que a associação direta seja uma interpretação cultural posterior. A ligação entre o Manchego e a identidade de Castela-La Mancha é inegável. Durante séculos, o queijo foi moeda de troca, sustento de pastores e símbolo de resistência em períodos de crise, como a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), quando sua produção artesanal manteve viva a economia rural.

Alta Gastronomia

O Manchego ganhou status de ícone. O chef espanhol Quique Dacosta, dono de três estrelas Michelin, incluiu-o em seu menu Delicatessen (2021) como homenagem à tradição, combinando-o com geleia de uva moscatel — prova de sua versatilidade. Já o restaurante madrilenho Casa Botín (fundado em 1725), considerado o mais antigo do mundo pelo Guinness, serve o Manchego curado como entrada há décadas, acompanhado de pão de centeio e azeite arbequina. Em 2020, o Museu do Queijo Manchego, em Ciudad Real, inaugurou uma exposição permanente sobre a relação entre Cervantes e a gastronomia regional, exibindo edições raras do Dom Quixote ao lado de utensílios históricos de produção queijeira.

Harmonizações: Do Clássico ao Inusitado

Para celebrar o Manchego, deixe-o brilhar. Um Rioja Reserva, com seus taninos elegantes, equilibra a riqueza do queijo curado. Prefere ousar? Uma geleia de pimenta ou um fio de mel de alecrim cria um contraste doce-picante que arrebata. E não se esqueça do clássico membrillo (geleia de marmelo): sua doçura âmbar e textura aveludada são o par perfeito para esta joia láctea.

Manchego no Brasil: Um Affair de Sofisticação

Nas terras tropicais do Brasil, o Manchego conquistou paladares com a maestria de um embaixador gastronômico. Em São Paulo, Rio de Janeiro ou Curitiba, tornou-se estrela de tábuas de queijos finos, dividindo espaço com os nacionais do Serro ou de Minas, mas trazendo consigo o ar sofisticado da Europa. Sommeliers brasileiros o unem a tannats da Serra Gaúcha, enquanto food designers exploram sua versatilidade em risotos, saladas e até sobremesas — prova de que tradição e modernidade podem ser dois lados da mesma faca de queijo.

Um Queijo, Muitas Vidas

Do pasto seco de La Mancha aos cardápios contemporâneos, o Manchego é mais que um alimento: é uma lição de resistência. Ensina que a verdadeira excelência não nasce do acaso, mas da fusão entre natureza obstinada, savoir-faire ancestral e tempo — muito tempo. Para os amantes de queijo, cada mordida é uma agem de voo para a alma espanhola, onde cada sabor conta uma história. Sirva-se à temperatura ambiente, deixe-o respirar e prepare-se: o Manchego não conquista apenas o paladar, mas a memória afetiva de quem o prova. ¡Salud!

Destaques da Edição:

1. O Manchego não é citado nominalmente em Dom Quixote, mas sua presença na dieta local da época é comprovada por registros de guildas medievais.

2. A Denominação de Origem (DOP) protege sua produção desde 1984, garantindo que apenas queijos feitos em La Mancha, com leite de ovelhas da raça Manchega, recebam o nome.

3. Em 2023, a Espanha exportou 56.420 toneladas de Manchego (Consejo Regulador DOP), sendo o Brasil um dos 15 maiores importadores.

4. Curiosidade: Sabia que as ovelhas Manchegas produzem apenas 1-2 litros de leite por dia?

5. Dica de Especialista: Armazene o Manchego em papel manteiga dentro de um recipiente aberto na geladeira. Antes de servir, deixe-o fora por 1 hora — o sabor agradece.

Autora: Autora: Íris Parizotto é professora do SENAR/SP há 30 anos. Ministra cursos diversos, entre eles o de Fabricação de Queijos e Derivados. É MBA em Gastronomia ( dentre outras formações) e professora de Análise Sensorial.